Cálice litúrgico de prata dourada, do século XVIII, em forma de copo de pé alto e base mistilínea, decorado com iconografia eucarística e com os instrumentos da paixão de Cristo, pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Cascais.
Este cálice, com 30 cm de altura e 14,5 cm de diâmetro da base, constitui um belíssimo exemplar de alfaia litúrgica setecentista, onde a decoração prolixa manifesta, simultaneamente, delicadeza, elegância e graciosidade, na qual as linhas curvas e os múltiplos elementos decorativos relevados – obtidos a partir de técnicas de fundição, recorte, cinzelamento, repuxado e douradura – dispostos simetricamente, desempenham um papel fundamental na composição da obra.
Esta alfaia litúrgica insere-se num modelo de estrutura e programa iconográfico caraterístico dos cálices eucarísticos do século XVIII, particularmente das produções de ourivesaria da segunda metade desta centúria, quando se adotam formas e prospetos decorativos de feição rococós nas artes decorativas portuguesas. A sua introdução, que se fez essencialmente através da divulgação da obra de diversos artistas franceses, na qual cabe um lugar de destaque a gravura com motivos ornamentais que chegava então de França, e que foi o veículo primordial da evolução das nossas oficinas na renovação das gramáticas decorativas. Muito significativamente, os mosteiros de Portugal possuíam nas suas livrarias muitas destas obras gravadas, sendo os motivos destas gravuras ornamentais naturalmente transpostos para a superfície do metal, como atesta esta peça bem representativa do gosto da época.
O cálice tem uma base de planta polilobada, com oito lados, alteada e composta por segmentos ondeantes cuja orla, decorada com friso perlado, é delimitada em cada vértice por um motivo vegetalista foliáceo ou floral acantonado em relevo. A partir do friso desenvolve-se um registo côncavo parcialmente axadrezado que conduz à área campanular invertida, segmentada por quatro reservas trapezoidais, que apresentam motivos eucarísticos, em baixo-relevo: o Pelicano, em sua piedade a alimentar três crias; o Agnus Dei, Cordeiro Místico sobre livro dos sete selos; a Fénix renascida das cinzas e a Arca da Aliança, por meio de segmentos verticais de pontas enroladas e sob festões fitomórficos. A haste, balaustriforme, apresenta um nó periforme invertido, finamente decorado com delicados anéis e grinaldas relevadas, que medeia o segmento entre base e copa.
A copa, campaniforme e lisa, encastra numa falsa copa recortada e ornamentada com quatro medalhões elípticos, de reserva interior lisa, definidos por volutas em "C" e "C" invertido, com acanto na base, cesta de fores no topo e folhagem estilizada dos lados, que enquadram símbolos da Paixão – Arma Christi –, inscritos nas cartelas ovaladas: a Escada e a Cruz – Vera Cruz – na qual Jesus foi crucificado; os Três cravos da crucificação, utilizados nas mãos e nos pés de Cristo; a Santa Esponja na vara, utilizadas para dar bile e vinagre de beber a Jesus, cruzada com a Santa Lança, que o soldado romano utilizou para infligir o golpe de misericórdia (a última das Cinco Chagas) em Jesus; o Martelo, utilizado para pregar Jesus na cruz, e a Torquês, ou alicate, utilizado para remover os pregos depois.
Na faixa da base foram detetadas algumas marcas de contraste que nos permitem determinar que este cálice foi produzido no Porto, entre 1768(?) e 1792, podendo a autoria ser atribuível a António José Soares Silva ou a António de Sousa, ambos ourives portuenses do último quartel do século XVIII que marcam as suas peças com o punção «AS» e que, à semelhança de todos os ourives da cidade, encontravam nas confrarias religiosas alguns dos seus mais importantes clientes. Entre as marcas do centro de produção e de manufatura, encontra-se a burilada, linha de marcas em ziguezague, também conhecida por “bicha”, feita com um buril, que tinha o intuito de testar o toque da liga de prata. Depois de aquecida, era comparada com amostras padrão, atestando que teria o teor mínimo de prata de «Dez dinheiros e seis graons da Ley», i.e. 854 milésimos de Lei, fixados por D. Pedro II a partir de 1689.
São conhecidos alguns exemplares idênticos nas dioceses de Évora (SO.SG.1.053our), Porto (P450.0024/01) e Viana do Castelo (?), onde no último foram também encontradas algumas marcas na base, embora sem a descrição destas.
Esta peça pode ser apreciada no Museu da Vila. Saiba mais sobre este museu AQUI.