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Ricardo Carriço
Ricardo Carriço nasceu em Cascais, no pico do verão, a 20 de agosto de 1964. Talvez por isso algumas das melhores recordações que guarda da infância são as dos verões passados aqui, na casa da avó, mesmo depois de aos 5 anos ter ido viver para Lisboa: “Acordávamos de manhã, saíamos e voltávamos ao final do dia. Era uma sensação de liberdade incrível, as pessoas conheciam-se todas umas às outras. Isto era muito mais pequeno na altura e havia uma relação muito familiar com tudo o que nos rodeava.” Qual personagem dos Pequenos Vagabundos, a série que fazia furor entre a miudagem nos anos 70, Ricardo lá ia com os amigos, à solta pelo Parque Marechal Carmona que “rapidamente se transformava num parque magnífico de aventuras, de castelos e tudo e mais alguma coisa, onde milhares de coisas podiam acontecer!”. Momentos que, amiúde, saltam da caixinha de memórias sempre que percorre as ruas desta vila onde hoje se sente privilegiado em morar.
Aos 15 anos, uma nova mudança. Na ilha Terceira, nos Açores, encontrou a sua primeira vocação na festa de finalistas do liceu de Angra do Heroísmo. Uma amiga desafiou-o a participar num espetáculo, que incluía uma passagem de modelos. Ricardo relembra, entre risos: “sei que vesti e despi um casaco e dei uma volta de 360º ao mesmo tempo, o que é surreal!” Mas a verdade é que à sua volta todos os amigos o incentivavam a continuar e quando regressou ao continente a brincadeira tornou-se mais séria a partir do momento em que se inscreveu numa agência de manequins. “Recordo-me de ter contado uma noite ao jantar com a minha família, em casa dos meus avós, e de a notícia não ter sido francamente bem aceite. Lembro-me de a mãe dizer: se ele quer fazer que faça bem feito, mas que prometa tirar sempre um curso”. E assim foi, par a par, Ricardo prosseguiu a carreira de manequim, mas completou o curso de Design de Interiores e Equipamento Geral, com uma especialização em Design Gráfico, no Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing (IADE). Um interesse que já vinha dos tempos em que frequentava as oficinas de pintura no Museu Condes de Castro Guimarães, em Cascais, e no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.
Numa época em que as passagens de modelos eram já mais do que simples desfiles e exigiam dos manequins uma forte capacidade de representação, o convite para trabalhar na televisão surgiu de forma natural, após uma entrevista à revista Moda & Moda, em que Ricardo comentou que gostaria de experimentar a carreira de ator: “um dia depois da revista sair, o To Zé Martinho telefona-me e diz-me naquele tom de voz grave e sério: ouvi dizer que você queria ser ator. Quer experimentar? Então venha cá fazer um casting.” Dessa forma surgiu o primeiro de muitos projetos: “A Grande Mentira (1990) era uma série de adolescentes (…). Foi engraçado, porque nessa altura também se estrearam na televisão o Rui Luís Brás, a Julie Sergeant, a Sofia Sá da Bandeira e a Helena Laureano.” Seguiram-se várias séries de sucesso como Claxon (1990), Major Alvega (1998) Médico de Família (1999) ou Querido Professor (2000) e também as telenovelas, que contribuíram para uma maior notoriedade do jovem ator. “A uma dada altura recordo-me que sentia alguma angústia, porque no meio da moda já não me chamavam porque consideravam que eu era da televisão. Um dia a minha avó telefona-me a dizer que tinham ligado da parte do Sr. Nicolau Breyner. Liguei imediatamente e foi o início da minha primeira novela, Cinzas. Aprendi imenso com a Mariana Rey Monteiro, o Armando Cortês, todos aqueles grandes nomes do teatro português. A minha formação foi-me dada por eles. E a única coisa que todos eles me diziam sempre era: tens que ser verdadeiro e generoso; entrega-te! E foi por aí.” Recentemente, na novela Laços de Sangue, em exibição na SIC, encarnou a personagem Jaime, cujas características lhe pareciam tão próximas de si próprio que o desafio foi encontrar pontos de distanciação: “Todos os personagens acabam por levar ou trazer emoções que nós às vezes nem sabemos que existem dentro de nós. Ou pelo menos temos a capacidade de as libertarmos dessa forma.” Jaime foi um desses exemplos. Numa cena com forte carga dramática, Ricardo simplesmente deixou-se envolver: “na altura da gravação, foi mergulhar no olhar da Gracinda Nave e ficar naquela angústia de um olhar meio vidrado que estava à minha frente … e não sei, aconteceu. Escangalhei-me a chorar de uma forma violentíssima, até me assustei!”. Os receios de não conseguir cumprir o que era pedido no guião desvaneceram-se e para tal bastou-lhe seguir os sábios conselhos dos mestres Armando Cortês, Mariana Rey Monteiro, Manuel Cavaco, Ruy de Carvalho, e tantos outros que sempre lhe disseram: “generosidade, entrega… não penses, deixa que o personagem viva dentro de ti”.
A estreia no teatro aconteceu pouco anos depois de se ter lançado como ator na televisão. Depois de um primeiro convite do encenador Carlos Avilez para integrar o elenco da peça "O Breve Sumário da História de Deus", de Gil Vicente, ao qual Ricardo Carriço não pôde corresponder, uma nova oportunidade surgiu, na sequência da abertura de um casting para a peça Ricardo II (1995), também com encenação de Avilez, que na época exercia o cargo de diretor do Teatro Nacional D. Maria II: “Liguei-lhe, ele não atendeu e deixei mensagem no gravador. Ao fim do segundo dia, o Carlos respondeu-me e disse-me: olhe, tenho estado a pensar em si, não precisa de fazer casting, venha ter comigo amanhã ao meu escritório ao Teatro Nacional para escolhermos o seu personagem, tenho aqui três hipóteses para si.” O apoio dos colegas foi fundamental, em especial de Glória de Matos, que o ensinou a projetar a voz, e de Maria João Rocha Afonso que o ajudou a ler as palavras de Shakespeare à luz dos nossos dias: “Lembro-me de a Maria João ter olhado para mim e dito: Ricardo… simplifica; lê o que está aí, respeita as pausas e começa a perceber as imagens que esse texto tem. E não há dúvida de que quando tiramos o “complicómetro” e olhamos para as coisas de uma forma natural, de repente começam a saltar imagens, pinturas, emoções...”
A ligação ao teatro assume hoje uma dimensão mais ampla. Desde que, juntamente com a escritora Maria Helena Torrado, trouxe a sede da associação Confluência para Cascais, Ricardo Carriço passou a desempenhar também os papéis de encenador e formador. Primeiro na Sociedade Musical de Cascais, mais tarde num espaço improvisado na Cidadela de Cascais, e agora em casa própria, graças ao apoio da Junta de Freguesia e da Câmara Municipal de Cascais. Uma casa que Ricardo Carriço gostava de ver cheia mais vezes: “A Confluência tem um site, uma página no facebook, fazemos divulgação, graças ao apoio da Câmara temos mupis espalhados por Cascais, mas as pessoas não são curiosas. Sinto que a sociedade de Cascais está adormecida, não sei que abanão é que tem que se dar porque as pessoas não saem. E quando vêm aqui, veem um espetáculo e ficam encantadas, pedem-nos por tudo para lhes enviarmos informação. O difícil é fazermos com que venham a primeira vez.”
O regresso a Cascais tem sido uma aventura. A sede da associação fica duas ruas abaixo da casa onde Ricardo nasceu e, num “ambiente de bairro” é frequente cruzar-se com pessoas que não o viam desde miúdo. O próprio acolhimento da associação foi muito positivo, dado que o espaço era anteriormente ocupado por uma discoteca que causava algum incómodo à vizinhança: “Foi engraçado perceber que os moradores acharam ótimo termo-nos instalado aqui. Temos conseguido cativar as pessoas, embora haja muitas que passam e não entram, nem sequer perguntam.” Fazer da Confluência um lugar de encontro que contrarie a tendência de afastamento entre as pessoas é um dos principais objetivos: “Existe na nossa sociedade uma constante promoção de tudo o que é fácil e esquecemo-nos de tudo o resto. É estranho, porque por um lado existe a internet que nos facilita o acesso à informação sobre várias coisas, por outro lado as pessoas não estão canalizadas para aquilo que é importante. E o nosso papel enquanto agentes culturais é exatamente despertar essa consciência nas pessoas, despertar os valores e a identidade cultural”.
[Texto publicado no Boletim Municipal "C", nº 8]