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Michael Cunningham

“Cascais salvou o meu próximo livro” | Bastaram dois meses em Cascais para Michael Cunningham “desbloquear” o rascunho do novo romance que trouxe de Nova Iorque. Afinal, é esse o objetivo das Residências Internacionais da Escrita, promovidas pela Fundação D. Luís I. Permitir que os escritores possam dedicar um tempo só para a escrita, longe das distrações que “conspiram para os afastar do ato de escrever”.

No caso do escritor norte-americano, a inspiração encontrou-a nos passeios matinais ao Parque Marechal Carmona ou nas tardes passadas na baía, junto à Praia dos Pescadores. “Cascais, literalmente, salvou o livro”, confessou o vencedor do Prémio Pulitzer para ficção, adiantando que conseguiu completar um terço do manuscrito durante a estadia em Cascais que descreve como maravilhosa. Antes de regressar a Nova-Iorque, o autor de “As Horas”, o seu romance mais conhecido e que foi adaptado, em 2002 para o cinema, falou-nos da sua experiência em Cascais, do papel de escritor no mundo de hoje, do processo de criação e da sua obra, para além de deixar alguns conselhos aos novos escritores. 

Nos seus romances transforma vidas triviais em algo extraordinário. É esse o papel do escritor, complicar o mundo? Penso que uma das obrigações de quem escreve ficção é a de insistir de que não existem vidas triviais. Existem apenas formas inadequadas de ver a vida das pessoas. Uma das razões porque gosto de escritores como Virgínia Woolf é porque ela é uma das primeiras escritoras, juntamente com Flaubert e James Joyce, a insistir que a história de cada um é uma história épica. Mesmo se olharmos de fora para as pessoas comuns, com as suas vidas comuns, percebemos que não existem pessoas nem vidas vulgares. 

Mas, o escritor também tem o dever de estar envolvido com o seu tempo, de se pronunciar sobre questões sociais e politicas? Não penso que os escritores tenham qualquer tipo de dever. Escrevem o que querem escrever. Já é bastante difícil escrever um livro sem alguém a dizer que deves fazer isto ou deves fazer aquilo. Penso que muitos dos livros que continuamos a gostar ao longo do tempo, são parte da história registada. Se quisermos estudar a Rússia do séc. XIX, leríamos histórias e biografias, mas também deveríamos ler Tchecov, Tolstoi e Dostoiévski porque eles registaram como era viver naquela época. De um historiador recebemos Napoleão a invadir Moscovo, mas de um romancista recebemos um soldado a morrer de frio durante a retirada e sem o romancista o soldado está perdido.

E nos Estados Unidos da América os escritores têm sido uma voz critica face ao sistema? Tenho sido surpreendido pelo quanto a ficção americana parece desenvolver-se numa espécie de “vazio político”, o que nunca seria o caso num romance sul-americano, num romance africano e provavelmente num romance português. Tem sido muito fácil para os escritores americanos imaginarem que quem está no poder não faz parte da sua vida diária e que de certa forma vivemos afastados não só de quem está no governo como de quem dirige as corporações. Vamos ver o que os novos romancistas estão a escrever agora, mas penso que é cada vez mais impossível que alguém que esteja na América imagine que quem está no poder não tem nada a ver com o que se passa na nossa vida e na nossa casa. Por isso são bem-vindos os romances mais envolvidos com a política.

Há quem defenda que estamos perante uma crise inspiracional e que a arte em geral está muito dependente de financiamento. Concorda? Penso que estamos no meio de uma crise enorme. Mas continuo a ler novos livros de novos autores que são fantásticos. Não sinto que os artistas estão a falhar, sinto que as instituições e os governos estão a falhar, mas os artistas estão a erguer-se. No que se refere ao financiamento, os escritores não têm dinheiro. Somos pobres mas puros (risos). Certamente, outras formas de arte, como a arte visual, estão muito mais suscetíveis a serem controladas pelo dinheiro agora. Essa é outra das forças que temos de combater. Sejam todos bem-vindos ao mundo, onde combatemos todos os dias (mais risos).

Um Cisne Selvagem [publicado em Portugal pela Gradiva] é o seu último livro, uma coletânea de contos publicado em 2015. Nele reescreve os contos de fadas que acompanharam a nossa infância, mas conferindo-lhe uma certa perversidade e crueza. Está a ficar com uma visão mais cínica do mundo? Se és um escritor estás em sarilhos se não fores cínico, mas também tens problemas se o fores demasiado. Vives entre dois polos, não queres ser totalmente otimista, mas se fores completamente cínico porque é que à partida escreverias um romance? No Cisne Selvagem sinto que apenas fui mais específico sobre a perversidade e o lado negro que já existia nas histórias originais. E colocando algumas questões que os autores dos contos de fadas não perguntaram. Quando era criança a minha mãe lia-me os contos de fada em que a princesa e o príncipe casavam e iam para o castelo e eu dizia: “Continua!”. E ela dizia: “É isto”. E eu: “Não pode ser só isto! O que acontece a seguir? E se ela não gostar do castelo? E se ele se apaixonar por outra pessoas?”. E ela respondia: “Este é o fim querido, vai para a cama”. Então reescrevi esses contos de forma a responder a algumas questões sobre o que acontece depois do “ E foram felizes para sempre”.

Mas as histórias são sempre as mesmas. Já em “ As Horas” também reescreveu a história de Mrs. Dalloway, de Virgina Woolf. O escritor está condenado a contar a mesma história mas de forma diferente? Penso que como escritores estamos sempre a tentar encontrar novas maneiras de contar velhas histórias. Mesmo um génio como Pessoa escreveu a história das nossas vidas, de como sobrevivemos aos dias, como vivemos no mundo. Li Mrs. Dalloway quando tinha, talvez, 15 anos e mexeu comigo. Não compreendi o livro, mas consegui ver a musicalidade e beleza daquelas frases. Comecei, então, a ler livros mais sérios e iniciei-me ali, como leitor. Um caminho que eventualmente me conduziu a que me tornasse escritor mais tarde.

Já conhecia Fernando Pessoa antes de vir para Portugal? Já tinha ouvido falar, mas nunca tinha lido. Comecei com o “Livro do Desassossego”, continuei com a “Poesia” e foi revelador. Tenho dito aos meus amigos de Nova Iorque que têm que ler Pessoa. Se alguém me pedisse para descrever o seu trabalho, não teria como dizer é como este ou como aquele, não teria a quem o comparar. Deve ser talvez a maior distinção que se pode oferecer a um artista: não ter ninguém a quem o comparar, é tão igual a si próprio.

E para além do conhecimento da obra de Fernando Pessoa, o que é que esta estadia em Cascais lhe tem trazido? É tão bom estar numa paisagem diferente por algum tempo. Acorda-te. Vês as coisas de forma diferente. O céu é diferente, as nuvens são um pouco diferentes, tudo é um pouco diferente e isso é fantástico para um escritor porque queres-te sentir assim onde vives.

Quais são os seus lugares favoritos? Há o fantástico Parque [Marechal Carmona] com os pavões e as galinhas, onde vou quase todos os dias. À tarde gosto de caminhar até à baía. Adoro aquela pequena praia junto à baía. É como se toda a vila lá estivesse. Há adolescentes a jogar voleibol, meninas a fazer a roda, pessoas em cadeiras de praia. Cascais é um sítio fantástico e há algo de mágico nele. Já deixei de me ver como um turista e comecei a sentir que vivo aqui, por agora.

Como é um dia na vida de Michael Cunningham? Oh, não tenho uma vida muito glamorosa (risos). Levanto-me e vou para o meu estúdio – também tenho um estúdio em Nova Iorque – e trabalho por 5 ou 6 horas. Preciso de ir diretamente para o trabalho quando acordo. É quase como se tivesse que passar do sono e do sonho diretamente para este mundo inventado. Então, aqui como em Nova Iorque, vou diretamente para o estúdio. A diferença de estar aqui é que quase não tenho distrações, não tenho compromissos, não tenho nada. Portanto tenho vivido em Cascais como se estivesse dentro do romance. Acordo à noite para escrever mais, é quase como se estivesse em dois países estrangeiros interligados: Portugal e o livro. Sinto realmente que este presente muito generoso da Fundação D. Luís de certa forma salvou este livro. Literalmente, ofereceram-me este tempo que me permitiu viver dentro do livro e isso fez uma grande diferença.

Considera que estas iniciativas como as residências para escritores são importantes? Penso que para algumas pessoas as residências de escritores são literalmente uma tábua de salvação. Há escritores que precisam de ser libertados das suas vidas por um tempo para se dedicarem à escrita. Faz a diferença se um governo ou uma fundação consideram que a arte é importante. Vindo eu de um país que gasta biliões em armamento e nada em arte, posso dizer que isto não é um grande sinal sobre onde residem as prioridades do país. E uma das muitas coisas satisfatórias de estar aqui é estar num sítio que leva mais a sério o que artistas estão a fazer. Espero que isto não soe demasiado pretensioso, mas estas iniciativas são um investimento não só no escritor, mas também na vida que o livro possa ter depois. Nunca se sabe se alguém pode ficar aqui durante dois meses e escrever um livro grandioso capaz de provocar mudanças no mundo. Portanto é um investimento muito maior do que apenas no escritor, também é nos leitores.

O que diria a alguém que queira ser escritor? O único conselho de que me lembro é: “não desistam”. Normalmente leva muito mais tempo do que se imagina a sentirmo-nos bem com aquilo que escrevemos e a ter algum tipo de reconhecimento. Demorei quase dez anos até começar a publicar. Houve tempos em que pensava “Meu Deus, já tenho 28 anos e nada acontece”. Já vi escritores a desistirem, a afastarem-se e a arranjarem um trabalho mais sensato. Mas eu acredito verdadeiramente que se tens algum dom para isso e continuares a fazê-lo, algo vai acontecer. Tenham fé. E façam o melhor que puderem para explicar aos pais porque é que se continua falido aos 30 anos. E sejam mais determinados a escrever do que as forças que vos fariam parar. Continuem a bater à porta até que finalmente alguém abra e vos deixe entrar. Demore o tempo que demorar.

Paula Lamares

Cascais Digital

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