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Lourdes Chuva

Mesmo em conversas informais, fora do seu posto de trabalho, Lourdes fala num tom de voz muito suave. Tão suave que apenas o seu interlocutor consegue escutar. É quase como se de um truque de magia se tratasse e nos conseguisse transportar, através da sua voz, para os ambientes de biblioteca. Lá, o sítio onde os silêncios são de ouro. Lá, onde não temos a liberdade de fazer parte das histórias dos livros lidos pelas pessoas à nossa volta.

Não é verdade que se costuma dizer que na vida há sempre uma explicação para tudo? Ora bem, também para Lourdes Chuva há uma explicação. Esta colaboradora contou-nos que vive, desde a infância, entre livros e bibliotecas. “Eu ainda nem sequer sabia ler mas passava o tempo na Biblioteca Condes de Castro Guimarães. Habituei-me muito àquele espaço”. No total soma 42 anos de trabalho em bibliotecas. Atrevemo-nos por isso a dizer, que o seu tom de voz ganhou forma quando aos doze anos começou a colaborar com a secção infantil da Biblioteca do Museu Condes de Castro Guimarães. Lourdes nasceu no Monte Estoril, em 1958 e foi viver para o Parque Marechal Carmona, quando tinha apenas um ano de idade. O pai, o senhor Tavares, já ali trabalhava como jardineiro, e aceitou a casa de função do posto de trabalho onde ficaram alojados. Tinha sete pequenas divisões, e Lourdes adorava brincar naquela que era uma espécie de sótão, de onde conseguia ver todo o parque e o ambiente à volta do mesmo, sem nunca se deixar avistar. Para uma criança da sua idade era quase como estivesse a viver uma aventura das histórias de encantar. Quando ouviam o sino do portão conseguiam ver da janela quem estava para chegar. A chave enorme do portão de entrada para a casa tornava tudo ainda mais especial e os amigos achavam o máximo. “Ninguém tinha uma chave tão grande”, afirma. Embora Lourdes tivesse mais dois irmãos, as diferenças de idade bastante acentuadas entre eles levaram a que as brincadeiras da filha mais nova do casal Tavares fossem passadas na companhia dos filhos de outros dois funcionários que também ali viviam: a filha de Gabriel, o guarda-noturno do parque, mas principalmente, dos três filhos de Oliveira, o antigo mordomo dos Condes de Castro Guimarães. Jogavam às escondidas, simulavam acampamentos e corriam o parque de bicicleta. Mesmo quando chegava a hora de encerrar o jardim ao público, as brincadeiras continuavam. Mas Lourdes também chegou a conviver com outras crianças que não viviam no parque; apareciam nas férias de verão e acabavam por ir parar à biblioteca do museu. Ainda se lembra da emoção que sentiu no dia em que a convidaram para ir à piscina da Parada, onde hoje é o Museu do Mar. Mesmo quando os amigos não estavam por perto, Lourdes nunca se sentia sozinha. Dirigia-se à biblioteca e ficava horas na companhia dos funcionários. Os ateliês de pintura, gravura e cerâmica que o museu começou a promover para crianças a partir de 1964, levaram-na a passar ainda mais tempo naquele espaço, com Graça Pessoa de Amorim, a técnica que todos tratavam, carinhosamente, por “Gracinha”.


As atividades do museu começavam, entretanto, a atrair atenções, e o público infantil passou a afluir em maior número. Berta Jonet, uma mãe que costumava ir com os filhos ao Museu-biblioteca, e que mais tarde, veio a ser a responsável pela biblioteca infantil, propõe, à então conservadora do Museu, Maria Alice Beaumont, que se separasse a área infantil da dos adultos. Era preciso arranjar um espaço adequado à sua idade, mais iluminado, com estantes onde os livros estivessem ao alcance das crianças e onde com a natural espontaneidade que as caracteriza, pudessem comunicar sem interferir com a leitura ou o estudo dos adultos. Foi a partir daí que os livros infantis e juvenis passaram a ter um espaço próprio numa sala contígua à biblioteca dos adultos. “Com um fundo bibliográfico de uma centena de livros davam-se assim os primeiros passos para a constituição da futura Biblioteca Infanto-Juvenil do Parque Marechal Carmona”. As escolas passaram também a frequentar o novo espaço e a afluência do público infantil não parava de crescer, tornando-se necessário aumentar o fundo bibliográfico do mesmo. Em 1971, por intermédio de Branquinho da Fonseca, que já tinha exercido o cargo de conservador do Museu Condes de Castro Guimarães, mas que na época era o diretor do serviço de bibliotecas da Gulbenkian, foi pedido o apoio da Fundação e aquele espaço tornava-se assim na Biblioteca Fixa nº 168 da Fundação Calouste Gulbenkian. Nessa altura percebeu-se que também seria necessário contar com o apoio de mais uma pessoa. Gracinha já tinha percebido o grande entusiasmo de Lourdes em ajudar na preparação das atividades, e por isso, quando esta concluiu a 6ª Classe, e a mãe não permitiu que prosseguisse os estudos em Oeiras, propuseram-lhe que passasse a ser colaboradora da biblioteca. Com a devida autorização dos pais, Lourdes aceita o convite com a maior alegria. Cumpria um horário de duas horas e meia, e ganhava 250 escudos por mês, o equivalente hoje a 1,25 euros. Tinha apenas 12 anos na altura. A Fundação Calouste Gulbenkian ficou responsável pela gestão do acervo. “Passou a fornecer livros regularmente, e com fartura. Para além dos livros, recebíamos formação profissional”, explica Lourdes. O espaço onde hoje está instalada a Biblioteca Municipal de Cascais-Infantil e Juvenil, era na altura, a garagem da carrinha da Biblioteca Itinerante. Mudaram-se para ali em 1975, porque se entendeu juntar a vertente biblioteca aos ateliês, passando-se a designar as novas instalações por Centro Juvenil. “Em Cascais ainda não havia outras bibliotecas, e este espaço exclusivamente dedicado ao público infanto-juvenil era único no país. Um sucesso!”


Como afirma, parece que mesmo hoje, continua a manter o estatuto de biblioteca inteiramente dedicada à população infanto-juvenil, única a nível nacional. A partir de 2003, a gestão do espaço passou a ser da responsabilidade exclusiva da Câmara Municipal de Cascais. Quando atingiu a maioridade, Lourdes continuou a apostar na sua formação. Voltou aos bancos da escola e concluiu o 12º ano. Fez diversas formações relacionadas com a sua área profissional, e como nos disse “Todos os dias aprendo coisas novas, conheço pessoas diferentes e encontro muitos amigos que outrora frequentaram a biblioteca infantil, e que agora trazem cá os seus filhos”. Com um grande sorriso, conta que alguns desses pais, tal como ela, ainda eram uns meninos quando os conheceu, e lembra- se bem que às vezes tinha dificuldade em “metê-los na ordem”!


Os pais de Lourdes viveram e trabalharam durante mais de 30 anos no Parque Marechal Carmona. Lourdes já ali não mora, mas continua a trabalhar na Biblioteca Infantil-Juvenil do Parque. A filha mais velha de Lourdes, contudo, ainda ali viveu e brincou até aos cinco anos. Tudo somado, podemos dizer que nas páginas da vida de Lourdes, três gerações da sua família tiveram o privilégio de morar num parque à beira-mar plantado. Um daqueles parques que a maioria das crianças só conhece das histórias ilustradas sobre o Jardim do Paraíso. Lourdes disse-nos que nunca pensou em mudar de funções. Adora o que faz.


 


C - Boletim Municipal | abril de 2013

Cascais Digital

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