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António Felício
A imprensa livre é um dos pilares da liberdade. Numa fase em que tanto a imprensa nacional como a regional passam por conhecidas dificuldade, aproveitamos o simbolismo do 25 de abril para conhecer quem deu um contributo ao importante mundo da comunicação. A rubrica “Perfil do Munícipe” assume uma roupagem diferente. Apenas nesta edição, é escrito na primeira pessoa por um jornalista que muitos em Cascais conhecem bem. António Felício fala-nos da sua vida, ao longo da qual registou momentos como a guerra em Angola, o 25 de abril vivido em Portugal e as mudanças operadas na nossa sociedade nas longas décadas percorridas até aqui. Fala também do seu amor pelo mar e como essa força o conduziu a Cascais da década de 70. Uma história que celebra a liberdade, escrita em modo biográfico por quem fala do homem para lá do jornalista.
“Nasci no Lobito (Angola), uma cidade que, dizem, o nome tem origem em olu-pitu que significa “porta” para o mar. É que o Lobito embora seja maior, a pare mais bonita e a inicialmente mais habitada, desenvolve-se numa língua de areia, a restinga, de cerca de 10 quilómetros de comprimento, por 500 de largura. Naturalmente que a minha juventude, grande parte da minha vida, esteve sempre ligada à baía e ao Atlântico, razão para que tenha praticado desportos náuticos. Natação, remo, caça submarina mas principalmente a vela, o meu desporto de eleição. Não só porque era bom praticante, ganhando prémios, mas porque ocupava os meus tempos livres. O meu mundo resumia-se, acabava, naquele farol que limitava a saída da baía. Mas contra o mais indicado, não respeitando as regras, velejava até perder terra de vista, para tentar vislumbrar o outro lado do mundo, o que naturalmente não surtia outro efeito que não o da sensação de liberdade. Isto num pequeno barco à vela de uma classe que não sei se ainda existe: Sharpie de 9m2, nada aconselhável para o alto mar. Visto agora, à distância, parece que gostaria de ser velejador solitário. Fora do banco, para onde a vida profissional me levou, trabalhava também como instrutor de vela da Mocidade Portuguesa. Colaborei também, como locutor, no Rádio Clube do Sul de Angola, rádio local que mais tarde alterou o nome para Rádio Clube do Lobito. Sou do tempo da onda média (a frequência modelada chegou mais tarde), dos gravadores portáteis de manivela, dos noticiários enviados pela Agência Lusitânia, com a maioria das vezes de leitura direta, com muito cuidado, dado que estava lá escrito, “ponto”, “vírgula”, etc. Recordo-me de ter apresentado o Duo Ouro Negro na sua primeira deslocação a Angola.
Com a vida militar, acabou-se a vela. No regresso, continuei apenas com a rádio, trabalho que, quase a contragosto, me levou a gostar de música sinfónica: era eu que estava de serviço nas duas noites que a rádio dedicava a este tipo de música, com leitura do libreto e tudo o mais… O que de início era uma estopada, acabou por entrar na minha vida e deixei de poder passar sem ela.
Em 1963, com a transferência da minha atividade profissional para Benguela fui também para o Rádio Clube local. Foram três anos de bons programas que não me envergonhariam nos tempos atuais.
Em 1966, deixei a minha terra. Por razões familiares aceitei a transferência para Portugal. Uns dias de estágio em Lisboa, um ano no Porto e de novo Lisboa. Mas os meus contactos com a rádio continuaram dado que o RCB me nomeou correspondente. Com o 25 de Abril fechou-se o ciclo.
Em 1971 vim residir pra o concelho de Cascais. Queria estar perto do mar e Cascais encantava-me. Vou muitas vezes à Marina, sonhando navegar num daqueles veleiros bem diferentes do “mini” do passado. Escolhi Cascais, uma terra que, muitas vezes, só valorizamos no regresso após uma prolongada ausência. Quando descortinamos a Baía, comprovamos que, se a Madeira é a Pérola do Atlântico, Cascais tem as cores, o brilho de todas as joias.
Com a chegada das chamadas rádios piratas, resolvi concorrer. Fui logo aceite, a minha experiência de África teria valido. Foi interessante mas...Eram muito poucos ou quase nenhuns os programas devidamente estruturados. Inicialmente fiz “Suave é a Noite” com as escolhas não só musicais, de acordo com o tema. Posteriormente o “Café da Manhã” que alterei para “Baía de Cascais”. Dava-me muito trabalho mas valia a pena. De 15 em 15 dias tinha um entrevistado em estúdio o que me levava a fazer uma pesquisa sobre o mesmo, que até os surpreendia. Recordo, entre outros, Walter Lopes (músico brasileiro) Carlos Teixeira e Viana Mendes, diretores do Jornal da Costa do Sol e da revista A Zona, respetivamente, José Man (artista plástico), José d’Encarnação (professor catedrático, arqueólogo, jornalista) José Abrantes (ex-profissional de futebol), Óscar Guimarães (presidente da Junta de Freguesia de Cascais). Ainda guardo o que me deixaram escrito depois da presença em estúdio.
Viana Mendes declarava que “foi bom ter estado no Café da Manhã, como será um prazer tê-lo na nossa equipa d’A Zona”. E aconteceu, até porque depois de 35 anos como bancário (não banqueiro) reformei-me.
Foram excelentes anos de Comunicação Social Regional de que guardo boas recordações. Mas tudo acabou. Uns colegas afastaram-se, outros faleceram e a imprensa regional quase não existe. Ainda colaboro com a revista “Sekreta” Digital mas já sem aquele fulgor anterior. Resumo a colaboração e mais por amizade ao seu diretor.
Vou agora desfolhando as páginas da vida, olhando para os prémios conquistados no desporto e para os que amealhei na Imprensa Regional. Prémio de Reportagem da Câmara Municipal de Cascais; Medalha de Mérito Jornalístico e Diploma da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana; Placas de Agradecimento da Associação de Setas de Lisboa e do Desportivo Monte Real; Troféu de Agradecimento pela colaboração ao Autódromo do Estoril; também do Autódromo, o medalhão João Pedro Teotónio Pereira. E dezenas de outras recordações das Câmaras de Cascais, Oeiras e Sintra, de coletividades dos concelhos. De Cascais terei de todas. Não é por vaidade, mas por satisfação de que fiz algo de útil para com a imprensa regional.
Somo 79 anos e no dia 1 de maio farei 61 anos que comecei na rádio. Tudo tem um fim. Chega. Dizem-me muitas vezes, que tenho histórias que dariam para escrever um livro. É verdade. Porque não o fazes, perguntam. Respondo com uma fábula de Esopo “Não suba o sapateiro acima da chinela”.