Inês Pedrosa é responsável pela programação dos debates e curadora literária da segunda edição do evento que traz a Cascais personalidades como Caetano Veloso, Paula Rego, David Lodge, Lídia Jorge, entre tantos outros. Uma programação cultural inspirada em Shakespeare, quando se assinalam 400 anos da morte deste poeta, dramaturgo e ator inglês. À conversa com o C, Inês Pedrosa fala-nos da importância deste festival inédito em Portugal.
O Festival Internacional de Cultura é um evento único no país e, provavelmente, na Península Ibérica. Como é que descreve o FIC?
O FIC é um Festival transdisciplinar e cosmopolita, aberto ao mundo e à multiplicidade das expressões culturais, num dos mais belos e aprazíveis cenários portugueses. A singularidade do conceito do FIC traduz-se também no facto de homenagear figuras-símbolo da cultura: no primeiro ano foi Cervantes, fundador do romance e da ideia democrática contemporânea, este ano é Shakespeare, que entendo como precursor de todas as formas de liberdade criativa, pelo que me pareceu que "A herança da liberdade" seria um título genérico adequado a esta edição do Festival. Aliás, entusiasmei-me tanto com a releitura de Shakespeare que fiz para pesquisar frases que servissem de ponto de partida às mesas de debate, que acabei por fazer um livrinho chamado As Lições de Vida de William Shakespeare, um dicionário de sábias citações que nos dão a ver o lado solar e lúdico deste autor inigualável. Trata-se de uma edição bilingue, para dar a ver a beleza do inglês shakespeareano, que estará disponível no Festival.
Como é que foi preparar a curadoria literária do FIC?
Entusiasmante. Eu gosto muito de programar, pensar em temas e dar-lhes rosto, juntar pessoas e pô-las a pensar em conjunto. Fiz a curadoria de todos os eventos da Casa Fernando Pessoa durante seis anos, estou habituada a este trabalho e faço-o com muito entusiasmo. Gosto particularmente de cruzar saberes e pessoas muito diferentes, fugindo a grupinhos, clãs e preconceitos; procurei que a programação traduzisse a energia das diferenças, com ênfase na qualidade e na originalidade da voz de cada participante. A organização de eventos é sempre também um trabalho de equipa, o que valorizo particularmente, dado que a escrita, que é o meu trabalho contínuo, é uma vocação solitária...
O que destaca da programação?
Destaco naturalmente todo o programa de debates: não me ficaria bem, enquanto curadora, dar maior relevo a qualquer deles em detrimento de outros, mas, sinceramente, creio que todos serão imperdíveis. Mérito dos excelentes participantes e moderadores que gentilmente acederam ao nosso convite. Nos espetáculos, permito-me chamar a atenção para a aula-show de José Miguel Wisnik, Paula Morelenbaum e Gabriel Improta, na noite de 17 de setembro, dedicada às canções de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Este formato, que alia os prazeres da música e da aprendizagem, é uma deliciosa invenção do músico e professor Wisnik, e Paula Morelenbaum é uma das mais belas vozes do Brasil, o que não é dizer pouco, porque aquele país dá vozes magistrais.
É um evento cultural que debate várias áreas como a economia, a sociedade, a identidade, a política ou a História. Abrange todos os tipos de público.
É essa a ideia: a economia e a política também são cultura, traduzem valores e ideais, estão inseridas na História e no quotidiano da sociedade. A excessiva especialização dos saberes tem feito com que esta perspetiva integradora se perca, demasiadas vezes, empobrecendo o debate público e, acima de tudo, a própria consistência da vida política e económica. Todas as decisões coletivas têm na base valores, entendimentos do mundo que são intrinsecamente culturais.
Grandes nomes nacionais e internacionais vão estar no FIC. Logo no arranque do evento Caetano Veloso vai estar em Cascais para um debate, moderado pela Inês Pedrosa, que questiona uma identidade cultural. O que está a minar a identidade cultural? O que podemos esperar deste debate?
A questão começará por ser a seguinte: não estará a ideia de identidade cultural a limitar-nos, oprimir-nos e a criar novos muros de isolamento? As guerras do mundo contemporâneo têm a sua origem ou a sua justificação neste tema. Em que medida a cultura serve de pretexto para a exclusão? Refletiremos também, e sobretudo, sobre as diferenças e semelhanças entre as culturas portuguesa e brasileira. O debate será sem dúvida muito vivo, dado que Caetano Veloso, que estudou Filosofia, tem uma visão do mundo sempre informada e surpreendente, e Antonio Cicero é, além de poeta, um dos grandes filósofos do nosso tempo. Acresce que ambos conhecem muito bem a cultura portuguesa e são excelentes conversadores.
E da conversa com o escritor britânico David Lodge, também moderada por Inês Pedrosa? Que temas serão abordados?
David Lodge publicou recentemente em Inglaterra a primeira parte da sua autobiografia, e a conversa centrar-se-á no seu percurso, desde a criança fugindo aos bombardeamentos de Londres na 2ª Guerra, ao jovem militar à força que foi nos anos 50, e depois ao escritor e académico, e ao modo como conseguiu articular essas duas profissões. Abordaremos a sua carreira literária e a sua perspetiva sobre a arte do romance. Será uma lição de vida e literatura, certamente com o humor a que David Lodge nos habituou nos seus livros, e que o caracteriza também como pessoa.
Outro dos debates do FIC intitula-se “A literatura pode transformar o mundo?”. E pode mesmo?
Todas as ideias transformadoras começaram por ser palavras escritas. A literatura traz-nos a síntese e o sonho do mundo. Creio profundamente no seu poder transfigurador, e creio que, embora os escritores estejam hoje, na minha opinião, demasiado arredados do debate público sobre os caminhos do mundo, a força das suas obras continuará a mover os leitores, agitando o pensamento e a existência.
Esta é a segunda edição do FIC em Cascais. É um local privilegiado para este tipo de eventos? O público adere e vem de todos o lado.
Cascais é, sem dúvida, um local privilegiado para um festival como este, em particular nesta época estival, com o mar ali ao lado e as pessoas disponíveis, ainda possivelmente de férias, arredadas de rotinas. A variedade das propostas do Festival é um atrativo suplementar: espetáculos para todos os gostos, debates, exposições, cinema, o convívio direto com os escritores na Feira do Livro... E a Casa das Histórias Paula Rego, onde decorrerá o programa de debates, é, em si mesma, uma obra de arte. E Paula Rego, certamente, a melhor das musas para este evento.