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O mistério da fumaça e da garrafa de metal
O mistério da fumaça e da garrafa de metal desvendado pelo chef Tomás Pereira na EB Fernando Teixeira Lopes.
A nuvem de fumo crescia no refeitório da EB Fernando Teixeira Lopes. E a escola lá estava, aparentemente impávida e serena como se nada de especial estivesse a acontecer. As escolas são assim de uma forma geral, às veze arrojadas, como deve uma boa academia, outras vezes tranquilas sob a cadência previsível da rotina. Mas, aquela fumaça parecia condizer mais com a primeira personalidade da academia, o que é bom. Suscitava a curiosidade dos miúdos, que se agitavam no recreio. E, para um espírito agitado a fumaça não era coisa que passasse despercebida.
Inquietos pelo fumo acotovelavam-se nas janelas exteriores do refeitório. Narizes repousados no parapeito e os olhos como antenas. Lá estavam a ferver de curiosidade. Mas a fumaça era uma autêntica cortina que não satisfazia a curiosidade antes a alimentava. E, como todos sabemos, a curiosidade é um bom combustível para a sagacidade, o que não é tudo, mas é um bom começo na academia. Ou, como diria o chef Tomás Pereira, que a esta hora prepara a refeição para a pequenada da EB Fernando Teixeira Lopes, o apetite é o melhor dos condimentos, e é também por isso que não o convém defraudar.
Mas voltemos então à misteriosa fumaça que serpenteia um canto do refeitório da escola e que deixa tão agitada a pequenada. Agora já vai deixando ver alguns, pequenos, detalhes: umas mãos cruzam de vez em quando aquela nesga clareira. E as mãos bem podiam ser de um alquimista em busca da pedra filosofal. Mas não. Aqui e ali o fumo vai desvanecendo, serpentando um rosto destapando pormenores. Primeiro os olhos, depois o nariz... entretanto, os olhos voltam a desaparecer na fumaça e aparece agora a boca... bom, na verdade o puzzle lá se vai construindo e ficamos a saber que a pedra, não a filosofal, mas a do puzzle é, afinal, o chapéu. Sim um chapéu bem alto e branco que não engana. Não é um alquimista, é sim um cozinheiro e não um qualquer. Sim, porque o chapéu do cozinheiro não tem só uma função higiénica, tem também a função de distinguir responsabilidades. O chapéu alto, como a cozinha francesa medieval distinguia, só pode ser o de um chef de cozinha. Ora, é o caso! E, pela informação já adiantada só poderia ser o do chef Tomás Pereira.
- Mas afinal o que faz o chef no meio daquela fumaça? Era a pergunta retórica que todos subscrevíamos.
É mesmo isso que vamos saber. Mas antes, voltemos ao recreio onde a curiosidade serpenteia, como a fumaça, o espírito da pequenada. Um grupo de miúdos segue em fila pirilau uma professora e dirigem-se ao refeitório com alguns objetos na mão. A julgar, pela firmeza do passo, dir-se-ia que é coisa orquestrada, isto é, trata-se de um grupo mais bem informado. Bom, paciência! Afinal é quase sempre assim. Parecia uma delegação de boas vindas, mas porque levariam eles aqueles apetrechos na mão? Voltemos ao refeitório recorrendo ao grande ecrã da janela exterior. Lá estão eles, e agora sim, vê-se claramente a cara do chefe Tomás Pereira ao lado de uma garrafa estranha de metal e, na sua frente, um batedor de bolos que parece ser, pelo que se pode ver daqui, um gelado. Todos se dirigem a uma mesa e já não há sinais de fumaça. Os pequenos, bem informados, seguem a indicação da professora. Sentam-se no chão de um dos lados da mesa, depois de lá depositarem todos os apetrechos. Depois, um deles entrega ao chef um lenço que ele utiliza para vendar os olhos. Um deles verifica que tudo foi feito na perfeição. Mas, os sorrisos de todos dão a entender que a coisa é pacífica. O chef senta-se à mesa. Não, não é para cozinhar. Vendados, mas, pelo que se pode perceber, para provar. E assim é. Prova primeiro um produto alimentar e depois outro e logo outro de seguida. Entre cada prova o chef diz, o que nós, os que estamos dete lado, presumimos ser a identificação do produto. Os miúdos lá dentro batem palmas. Quer dizer que ele acertou. Isto de ser chef é coisa que exige memória olfativa e gustativa, para além de outros predicados, claro! Mas, como diria Dizzy Gillespie a Charlie Parker, duas lendas do Jazz norte-americano, no célebre filme de Clint Eastwood: “para improvisar é preciso conhecer bem o original”. Duvido que Parker já não o soubesse, mas serve isto para dizer que, também na cozinha improvisar implica conhecer bem os sabores originais. E Tomás Pereira provara isso mesmo à pequenada. Pelo que daqui se percebia, identificou todos os produtos e de olhos vendados, uns pelo sabor, outros pelo cheiro. E, depois, deu espaço à curiosidade dos miúdos: O que é a cozinha molecular? Perguntava um; Que líquido é este que está dentro desta garrafa de metal? Perguntava outro.
E o chef lá ia satisfazendo a curiosidade como podia. Cá fora entre uma espreitadela e uma dica do parceiro do lado, todos iam percebendo as respostas. E, para todos, essa coisa da Cozinha Molecular era uma verdadeira novidade. Na verdade essa pequeníssima partícula que dá nome a uma forma de cozinhar, transformando a cozinha em laboratório, que olha a panela como um tubo de ensaio e distingue no arroz, a água das proteínas, estas dos lípidos e aquelas dos hidratos de carbono, deixou a rapaziada curiosa pela refeição que se seguia.
Entretanto, na cozinha o tacho de ferro, pejado de hidrocarbonatos, proteínas e sais minerais, lá ia moldando sabores numa tarefa que lembra a dos velhos druidas, neste caso alterando porções e não poções, que também as há, e manipulando sabores, cores, texturas e odores que baralham os comensais menos avisados. Tudo isto, que parece obra de alquimista, é afinal tarefa destes cozinheiros que se debruçam e entregam às transformações químicas com um único propósito, proporcionar um repasto agradável a este público, nada fácil por sinal, pouco dados a arrojadas experiências das papilas gustativas.
Mas, a grande dúvida, a mãe de todas as dúvidas, continuava por desvendar: Que fumaça era aquela que contaminou de curiosidade toda a escola?
Tomás Pereira lá foi explicando que, neste caso, mais do que uma experiência química era uma experiência física. Na verdade, o leite-creme era transformado num gelado bem gostoso pela ação de um líquido vertido de uma grande garrafa de metal, sob um inofensivo leite-creme. O azoto líquido que caía da tal garrafa metálica, à temperatura de 150 a 160 graus negativos, transformava rapidamente o leite-creme em gelado. E Tomás explicava: “O azoto transforma o líquido em sólido num abrir e fechar de olhos e a rapidez com que o leite-creme passa do seu estado líquido ao estado sólido é tão rápida que não chega a formar os cristais de gelo, o que para um bom gelado, cremoso é fundamental”, explicaria o chef.
Ok, estavam finalmente desvendados os segredos da fumaça e da garrafa de metal que tanto intrigara a pequenada. H.C.