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A memória que ajuda a criar na Escola da Alapraia

O Chef Vítor Areias na escola que multiplica as portas de entrada para o saber.

Vítor Areias entra na Escola Básica da Alapraia (EBA) sem dar pela imponente presença de Michael Jordan, a lenda da NBA, pintada numa das empenas da escola, ao lado do Neemias Queta, o português que joga no basquetebol profissional norte-americano. Ambos decoram uma parede que serve de tabela de basquete e, ao mesmo tempo, são o olhar atento às movimentações táticas dos alunos da EBA. Em breve, garante-nos Luís Malta, diretor deste agrupamento de escolas, também Cristiano Ronaldo irá juntar-se ao mural de famosos. Cumprirá, provavelmente, a sua função de mito e profeta da estrada de sucesso no mundo da bola, no caso, da bola chutada.

Vítor Areias, chef de cozinha, mais dois preciosos ajudantes, Leonardo e Benedita, ambos estudantes, ele da Escola Superior de Hotelaria e Turismo, ela da Escola de Hotelaria e Turismo, dirigem-se à cozinha do refeitório, onde os espera a Chef Anisabel que todos os dias assegura uma boa alimentação à população da escola (alunos, professores e auxiliares). Hoje, espera que outro toque de mestria à ementa angarie mais clientes.

Indiferente aos ícones pintados nas empenas e aos Chefs, o João (nome fictício), aluno com necessidades educativas especiais, constrói o seu mundo num cantinho do recreio e responde com um aceno de mão à pergunta do diretor Luís Malta: “João, está tudo bem?”. Por momentos, João sai do seu pequeno mundo, ainda que com um aceno de mão, valorizando a preocupação do professor, mais do que o olhar intrusivo das enormes imagens pintadas na parede ou a presença do Vítor Areias, da Benedita e do Leonardo.

Há, naquele microcosmo, uma ilusão cognitiva que passo a explicar: Quando falamos da escola ocorre-nos uma ideia de coerência, de unidade harmoniosa pautada pela cadência de uma cartilha. Ora isso não é verdade, a realidade contradiz tudo isso. A escola é um momento de construção no caos. Que o diga o professor Luís Malta e outros professores da escola que diariamente viajam naquele corredor interior trespassado pela luz natural que os leva de lés a lés, dialogando em cada canto com os alunos, resolvendo pequenas equações da puberdade e da adolescência. Tudo isto para dizer que a Escola, esta como as demais, não têm uma porta única de entrada para o saber, sobretudo, aquele saber que molda o caráter.

Não tarda muito e os Chefs já se confundem com panelas, testos e demais instrumentos deste pequeno universo onde as mesmas mãos que manobram facas afiadas debulhando o alho ou picando a cebola, arrancam pesados panelas da boca do fogão, e os mesmos dedos indiferentes à brasa, tratam com minuciosa sensibilidade os temperos ou vertem com parcimónia cada pitada de sal.

E assim é o trabalho, dos professores como dos Chefs: umas vezes parece inspiração, mas é sempre muito mais transpiração, que a inspiração dá trabalho. Um trabalho, infelizmente, pouco valorizado por quem inverte o sentido da criação dando mais valor ao resultado que ao processo.

Mas, na escola, como na cozinha, às vezes os sentidos gravam-nos na memória trilhos preciosos que, tal como a pimenta e o sal, são parcimoniosamente usados para ajudar e não tolher os caminhos da inspiração. Para ser mais preciso, a memória é uma ferramenta, não uma cartilha. Quem a usa como cartilha, imita não cria, e corre o risco de destruir as rotinas do pensamento criativo. Abandonemos as cogitações e observemos os passos do Chef, e dos seus aprendizes na cozinha da escola da Alapraia.

Pois, na cozinha lá estava Vítor Areias, Anisabel, Benedita e Leonardo a criar: “Ao frango juntei-lhes dois vegetais da época, o nabo e o aipo de bola”, diz-nos Vítor Areias. Ora, na cozinha, quando se cria, equilibra-se o sabor sem desequilibrar o valor nutricional e não é tarefa fácil. “Na sopa de lentilhas acrescentei um pingo de azeite, cebolinho e laranja”. Se a nossa intuição dizia: “vai dar asneira!” A memória de Vítor Areias, que não vai em intuições, mas em experimentações, dizia-lhe exatamente o contrário. Vítor tinha na memória, aquela que parece esculpida no palato, a mistura de laranjas com lentilhas e, noutro cantinho da memória, surgiu-lhe um velho pitéu, muito usado nas vindimas, a combinação entre a laranja talhada em fio de azeite e flor de sal e juntou, por alguma razão, o cebolinho. E tinha razão, a mistura foi amplamente aprovada pelos cerca de 700 comensais.

Nem de propósito, também Luís Malta e os demais professores estimulam a memória dos alunos, recorrendo aos bem-sucedidos Cristiano, Jordan ou Queta, apenas para que a usem, não como cartilha, mas como ferramenta de uma carreira que eles próprios terão de construir, que quer dizer, criar. CMC/HC/PM

 

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