CONTACTOS
Fale connosco
800 203 186
Em rede

Está aqui

O perfume que inebriou 660 anos de história

Talvez o fresco aroma a alecrim, o perfume do rosmaninho, do tomilho e da esteva que emana de uma frondosa vegetação de carvalho cerquinho, carrascos ou zambujeiros não deixasse indiferente quem se passeou nas margens da Ribeira das Vinhas, no Alto do Cidreira, em Alvide, em Alcabideche ou nas redondezas de Freiria. E, quem sabe, não é este aroma que liga o presente a um passado remoto, como uma hera perene que envolve o tempo nos seus braços, uma marca genética de um território que ganhou a identidade administrativa há 660 anos, mas habitada, pelo menos, desde o neolítico, como nos revelam as Grutas do Poço Velho ou de Alapraia. 

O mesmo aroma que, em Freiria, entre fileiras de ciprestes que desembocam no portão norte da Villa Romana, nos faz imaginar os fins de tarde: Titus Curiatius Rufinus lá está. Cáligas dispostas no chão, distendido, toga dobrada sobre o braço direito, ou talvez meio coberto pelo manto que lhe tempera o frio, disfruta no meio do pátio da casa senhorial, o ócio. Mais adiante, na pars rustica, os braços cruzam-se na labuta e, o rude algodão das vestes dos escravos, assim como é a vida, limpam o rosto suado de quem ali acomoda no celeiro o trigo, ou esmaga os frutos dos zambujeiros e contempla o fio de azeite que escorre, enquanto o suor se mistura na água russa.

Estamos ainda no século I, ou talvez não, mais perto do século V, longe de Roma, mas também do tempo em que Cascais se autonomiza de Sintra. Antes mesmo que se inicie essa contagem, dos 660 anos, as vidas foram ficando, inebriadas pelos aromas, a maresia, o murmúrio de um mar que ora beijava a terra, ora açoitava escarpas no Guincho ou no Espigão das Ruivas. Encantados pelas cores do céu em fim de tarde, pintadas a partir de Freiria, Casais Velhos, Alto de Cidreira, Casal do Clérigos, Miroiços e Caparide, nem sempre rezando ao mesmo Deus, por cá ficaram. Foi este o paraíso de romanos, visigodos, muçulmanos e cristãos, gentes a quem nada faltou, nem mesmo a fome, porque a terra não se promete, constrói-se. 

Nos 660 anos comemoram-se, também, os últimos 50 em Liberdade, porque, como disse o poeta Ibn Mucana, “O amor da liberdade é o timbre de um carater nobre!” que existe na raia miúda, essa mole humana que verdadeiramente rema. 

No litoral, pescava-se, pilhava-se e fugia-se da pilhagem e, no interior, onde a maré trazia cereais, cebolas e aboboras, diz-nos igualmente Mucana, “os moinhos trabalhavam com as nuvens” e alimentavam Lisboa e tantos quantos lá chegavam e partiam. 

Ora, Cascais já não era só o porto de espera pela melhor vaga que aponte o caminho sem percalços, na Barra do Tejo, é também um entreposto de pescado e produtos agrícolas que alimentam Lisboa. Argumento forte que, a 7 de junho de 1363, fez D. Pedro I subscrever a Carta de Vila de Cascais, no Paço da Alcáçova de Santarém, entregue aos homens-bons da aldeia de Cascais, agora Vila, isenta da sujeição a Sintra, com jurisdição e juízes para fazer direito e justiça, a troco de 200 libras por ano, além daquilo que já era pago.

A área do concelho só a 8 de abril de 1370, aquando da entrega de Cascais e do seu termo, como feudo, a Gomes Lourenço de Avelar, seria definida, e não era muito diferente do atual limite do concelho, onde se calcula vivessem, em finais do século XIV, um milhar de indivíduos. Uma média de ocupação superior à do restante território português que, segundo um censo de 1527, mais de meio século depois, apontava para a existência de 280.528 fogos, cada um dando abrigo a 4 almas, significava uma população de 1.122.112. Número suspeito face á expulsão de judeus, muçulmanos e população ceifada pela peste, fome, venturas e desventuras marítimas.    

Desde os finais do Século XV que as novas, boas e más que vinham do mar sabiam-nas as gentes de Cascais do alto da Torre de Santo António e sofriam para que o Tejo nem sempre fosse um tapete vermelho. A todos este povo cerrava ou franqueava portas e era o primeiro a sofrer quando derrubadas, abrigava-se nas cercas de um castelo, também ele por diversas vezes devassado. 

Quis a ironia que, só depois de trespassada pelo Marquês de Santa Cruz e pelo Duque de Alba, a 28 de julho de 1580, a Fortaleza de Nossa Senhora da Luz seria construída e, após a Restauração, escondida pela estrutura da Cidadela. 

Pela governação de Cascais passavam os Avelares, os Vilhenas, João das Regras e seus descendentes, os condes de Monsanto e os marqueses de Cascais. Quatro séculos cruciais do porto da vila, como posto avançado, porta de entrada e entreposto. Nos finais do século XIV, mais de dois terços da população vivia no interior, o povo saloio e, em Tires, canteiros e cabouqueiros sobreviviam do trabalho de extração e talhe do calcário. Na vila, não mais de 200 a 300, fatalmente lambidos pelas águas do mar a 1 de novembro de 1755. 

Ao lado da Cidadela, no Convento de Nossa Senhora da Piedade dos Carmelitas Descalços, Frei António do Espírito Santo descreveria o desastre: “Suas ruas não são Ruas, são montes de pedras. Suas praças não são praças, são cúmulos de caliças. Seus templos não são templos, são montões de quebradas madeiras (…) nenhuma [casa] deixou de padecer destruição, mais e menos, ou do terramoto, ou quando o mar saiu fora. As mais interiores da vila, o movimento as demoliu; as da borda do mar, este as soçobrou com quanto nelas havia”. 220 mortes, 93,1% nas freguesias de Nossa Senhora da Assunção e Ressurreição de Cristo.

A vida prossegue, é certo, e as feridas vão sendo saradas com o tempo, mas só há uma nova Vila quando os monarcas do reino, D. Maria Pia, D. Luís e depois D. Carlos se apaixonam pelos encantos do mar, talvez já não o mesmo perfume que inebriou as gentes do interior, mas nascia uma terra diferente. 

Em meados do século XIX, a população de Cascais, perante censos mais fiáveis, são mais de cinco mil e a freguesia da Vila de Cascais ganha peso (1498), ainda que continue a ser S. Domingos de Rana (2363) e Alcabideche (2193) as mais populosas. Cascais mantém as caraterísticas: agricultura, pecuária, pesca e exploração da pedra, uma atividade estimulada pelo aumento das obras públicas que desencadeia vários polos de extração como as pedreiras de Cruz d’El-Rei, Cai-Água, Parede, Tires, S. Domingos de Rana, Conceição da Abóboda, Fisgas, Murtal e Manique. A agricultura continua a liderar, ainda que, no último quartel do século XIX, escasseie mão de obra, que mais tarde atrairá migração alentejana. A vinha pontifica, desde logo o Carcavelos, a freguesia que lhe dá nome e que acabara de passar de Oeiras para Cascais, mas também na Parede, Murtal, Livramento e Galiza. E assim seria, não fora o ataque da filoxera e do Oídio. 

O comércio, apesar de incipiente, beneficia de melhores caminhos e da adoção do sistema métrico decimal. A definição de horários, para a venda em rua e a fixação de um local de venda (1867), são marcos de uma nova atividade que irá ocupar cada vez mais gente e alimentar de impostos o poder.

Com a instalação na Cidadela da família Real, em 1870, a vila transforma-se num centro de veraneio, que não perdeu com o fim da monarquia, apenas massificou a prática. E, com o veraneio, veio a transformação da costa numa franja urbana, primeiro a Costa de Santo António ou Monte do Estoril e tudo isso a puxar o comboio.

E se a vila se aburguesava, o interior saloio inventava o movimento associativo local, social, cultural, lúdico, desportivo, educativo e beneficente ou que mais houvesse.

A vila, inspirada, na Rivera francesa, recebe na primeira metade do Século XX, a aristocracia em declínio e é palco do contraditório poder crescente na Europa. A volúpia da conspiração mora na franja costeira do concelho e dá a Cascais uma aragem cosmopolita. Nas mais insuspeitas mansões, nas barbas do ditador, vão sendo escritas as linhas da resistência ao regime e acabará por ser aqui definido o programa que, em abril de 1974, é aclamado pelo povo nas ruas de Lisboa.

Cascais não volta a ser a mesma. O poder local toma a palavra e é legitimada pela raia miúda. Mas a aragem cosmopolita não mais desaparece e muda os arrabaldes do concelho.

A 7 de junho comemora-se o estoicismo de um povo, às vezes saloio, outras vezes marinheiro, que embarcou e atracou neste lugar, e que, por direito, conquistou a proa da Caravela, que largou do porto de Cascais há 660 anos.

Veja esta e outras noticias no Jornal C - 148

Cascais Digital

my_146x65loja_146x65_0geo_146x65_0fix_146x65360_146x65_0my_146x65loja_146x65_0geo_146x65_0fix_146x65360_146x65_0