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"É preciso tirar as crianças do sofá"

Carlos Neto, Professor Catedrático, investigador na Faculdade de Motricidade Humana fala-nos da importância do Brincar no desenvolvimento da criança, dando espaço e tempo à brincadeira porque, “brincar é estruturante”. Mas vai mais longe e afirma que é preciso haver a coragem de mudar o paradigma da “trilogia, escola, comunidade e família”, porque, caso contrário, “o que hoje ensinamos na escola provavelmente não servirá para quase nada”.

O que é brincar?

É um comportamento ancestral de todos os animais. Na infância e durante todas as idades, o brincar é estruturante. Faz parte do comportamento espontâneo e do organizado. Beneficia imenso a espontaneidade, a criatividade, o plano sensorial, percetivo, social, cognitivo e, essencialmente, a relação emocional.

E como brincamos?

Há o brincar ao faz de conta, o jogo simbólico. O brincar físico, com dispêndio de energia. Também o jogo social. Somos seres sociais antes de tudo. Há uma correspondência entre a herança biológica e cultural. Quando a criança é exposta ao que a rodeia, brinca com o próprio corpo, com os objectos, com a natureza. Isso é essencial no crescimento mental, na estruturação da linguagem, nas aquisições motoras e perceptivas. Tudo isto é fundamental para o equilíbrio e capacidade adaptativa, do ponto de vista escolar, da relação social.

E porquê a urgência de brincar?

Vivemos num mundo digital avassalador. As crianças vivem o corpo na ponta dos dedos. As novas tecnologias forçaram o corpo a funções não expectáveis. Nas primeiras idades, precisamos de mexer o corpo, ganhar autonomia, de arriscar, explorar, descobrir.

O que muda na criança com a brincadeira?

Aprende a lidar com os próprios complexos; a resolver problemas; a comunicar. Ganha capacidade de autorregulação emocional. Sem a competência da relação com os outros dificilmente teremos crianças felizes, com capacidade de adaptação a uma sociedade completamente diferente no futuro.

E qual é o papel da escola?

O que é que a sociedade do futuro vai exigir a estes cidadãos e como estamos a preparar as crianças para ele?, são das perguntas mais importantes que podemos pôr. O que hoje ensinamos na escola provavelmente não servirá para quase nada. Temos de pensar em como isto vai mudar, com novas tecnologias, inteligência artificial, robótica, muitas funções sociais que vão desaparecer. Temos de preparar um cidadão novo. O brincar é talvez o comportamento que melhor ajuda a estruturar todas as competências são essenciais para o futuro. 

Quais os perigos deste afastamento das crianças da rua?

A criança está muito desligada do mundo natural, o que tem diminuído as suas competências essencialmente motoras. Há problemas muito sérios de obesidade, inatividade física, sedentarismo infantil. Estão a criar-se doenças complexas. Há um decréscimo enorme nas últimas décadas do ponto de vista do comportamento lúdico, da brincadeira livre. Um aumento muito pronunciado de atividades sedentárias, que levam as crianças a terem problemas de ansiedade, depressão, excesso de peso, diabetes, doenças respiratórias, cardíacas. Há também uma preocupação muito evidente com a passagem para a adolescência e para a idade adulta e problemas do ponto de vista comportamental, inclusive a taxa de suicídio.

Mas há novos medos.

Há circunstâncias históricas que explicam que em Portugal os adultos vivam cheios de medo. Ao viverem assim não dão autonomia, independência e mobilidade às crianças. Isso é muito penalizante para o desenvolvimento do adolescente. Tem repercussões enormes não ir a pé para a escola, sair de bicicleta, andar na rua, fazer tarefas que permitam descobrir e viver o território. As crianças serem transportadas de automóvel para a escola, é manipulá-las na sua liberdade de ação. Há uma imaturidade emocional enorme. Ao contrário do que acontece noutros países temos um índice de mobilidade muito baixo. Os pais e os educadores têm medo que as crianças tenham autonomia. Sem autonomia não há desenvolvimento, nem liberdade, nem democracia. As crianças necessitam de autonomia desde que nascem. Temos de exercitar esta capacidade, libertarmo-nos do medo, das representações mentais que criámos. Temos de acreditar que as crianças são capazes de resolver problemas, de se confrontar com o risco, com o inesperado. Educar é dar autonomia, distanciamento, Dar a capacidade à criança de resolver por si os seus objectivos, de não ficarem aprisionadas e serem conduzidas, manipuladas, no seu quotidiano.

E como se combate o medo?

Não sou psicólogo, mas a melhor forma de combater o medo será conter-se emocionalmente e perceber que crianças e jovens têm, dentro de si, mecanismos de controlo que lhes permite terem liberdade de ação e autonomia. Há momentos em que precisam de proximidade, afeto e segurança. Mas, antes de tudo, precisam de confronto com o risco, de autonomia, e de distanciamento e isso as escolas e as famílias devem dar. As políticas públicas devem apostar numa sociedade onde haja o maior risco possível. Temos de correr riscos para haver um desenvolvimento harmonioso.

As crianças estão aprisionadas?

Olhem para os joelhos das crianças, estão todos limpos! Policia-se o seu comportamento. Nas prisões americanas, os presos têm cerca de três a quatro horas de atividade no recreio. Em Portugal, 70% das crianças têm menos de uma hora de brincadeira livre por dia. Menos tempo que os prisioneiros. A infância está aprisionada. Estamos a criar monstros.

Como pode a política pública inverter esta tendência?

Temos de pensar em cidades saudáveis para as crianças. Onde elas participem nos próprios processos e projetos. A Câmara Municipal de Cascais têm prestado boas políticas para a infância, no que toca à vivência da cidade, do criar condições para as famílias virem à rua. O brincar na rua está em vias de desaparecer, já não se veem crianças na rua. É preciso tirá-las do sofá, de casa, para serem mais ativos, terem mais saúde mental e física. Nós temos de correr riscos para que tudo isto se possa desenvolver de forma harmoniosa e não esta parcimónia em que tudo está controlado, tudo está aprisionado, tudo está previsto. Quando tudo está previsto, não há desenvolvimento. 

E como está a Câmara de Cascais a fazê-lo?

Primeiro, com a criação de espaços verdes, para todas as idades. E, acima de tudo, escola com o novo modelo organizativo do ponto de vista educativo, mais equilíbrio entre os tempos formal e informal. A autarquia apostou bem na humanização dos recreios, uma das coisas mais importantes, com mais equipamentos e espaços. O tempo passado na sala de aula e no recreio tem de ser revisto. As crianças têm de participar mais nos projetos educativos. Tem de haver mais tempo livre. Estamos a trabalhar na reformulação das Atividades de Enriquecimento Curricular. Para que as crianças, depois de já terem tido muitas aulas escolarizadas, possam ter um tempo para um conjunto de atividades mais livres. Também a relação entre os tempos de trabalho dos pais, em família, na escola, onde passam muitas horas, e na comunidade, implica uma mudança de políticas. Nesse sentido acho que a Câmara Municipal de Cascais está neste momento a ter uma estratégia visionária e inovadora do que pode ser o futuro de uma comunidade que participa, partilha, resolve este tipo de problemas Isto implica uma grande mudança e é preciso haver aqui muita coragem de mudar o paradigma da trilogia, escola, comunidade e família.

Leia a entrevista aqui a entrevista alargada 

Cascais Digital

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