CONTACTOS
Fale connosco
800 203 186
Em rede

Está aqui

Bailado à beira do prato

A coreografia de dois pratos deliciosos na EB Fernando José dos Santos.

Há atividades profissionais que são portos em mar alto e emborrascado onde nos obrigam a ancorar, por necessidade e depois, tudo se torna claro, novas rotas surgem desenhadas num mapa de uma lógica surpreendente. Foi o que aconteceu a este grupo de marujas que hoje aportaram sorridentes na cozinha da EB Fernando José dos Santos, vindas de um outro porto qualquer.

A Ana Sanchez, por exemplo, viajou horas infinitas no lago do cisne, quero dizer, o seu grande sonho de menina era ser bailarina e o sonho foi concretizado. Estudou e formou-se em dança contemporânea. Ora até aqui tudo parecia perfeito. Porém, as nuvens adensaram-se quando a sua vida já apontava o alto mar.

“Queria muito ser bailarina, mas, em Portugal, viver da dança não dá para sustentar uma família”, desabafa. E, se de um lado o apelo do corpo convocava, do outro o da alma reclamava. Era a borrasca perfeita que não adivinhara quando escolheu aquela profissão. Ironia da vida, se isto fosse uma coreografia de dança, talvez fosse representada por duas metades separadas por vontade de Júpiter, o rei dos Deuses. Duas metades que anseiam juntar-se num só corpo. No Mito Andrógino de Platão, o feminino procura o seu lado masculino e entrelaçam-se numa dança que anseia a unidade. Mas aqui Júpiter não lho permite, e Ana não tem outra opção que não a de optar. É sempre assim. E Ana opta pela família.

É, pois, nesse porto em Mar alto que Ana descobre que dançar numa decoração cénica de tachos e panelas é afinal uma boa opção. Apaixona-se pelos sabores, sobretudo dos aromas libertados por plantas, raízes e tubérculos, e a nova paixão de Ana Sanchez aparece como o tal rumo claro no horizonte. E aqui vai mais um plié, só que desta vez na cozinha.

De repente, dois mortais encarpados e eis que surge a Sofia Moreira! Também ela vem de um porto longínquo e ancorou na cozinha por diferentes razões. Consta que neste caso o mar não se emborrascou, pelo contrário, este porto de tachos e panelas estava escrito no roteiro de navegação de Sofia. “Procuro ter uma alimentação maioritariamente vegan e o mais saudável e sustentável possível”, confessa. Ora à mente sã e corpo são, Sofia junta estômago leve e o planeta são. Bem-vinda, pois, Sofia, à cozinha da EB Fernando José dos Santos.

Decidiram então doar saberes e sabores aos miúdos da escola e escolheram uma ementa apropriada: Arroz com cubos de frango e salada fresca de couves. E para o povo vegan aí vai: Cuscuz de Tofu, cenoura e beringela.

Agora a cozinha está sobrelotada, parece um cais em dia de embarque. De um lado, a Ana salta para um bico do fogão, pousa ao lume uma frigideira e cai-lhe dos dedos um fio de azeite. A cozinheira rodopia como uma bailarina, Sur Le Cou-de-Pied, e na primeira volta solta cubos de peito de frango na frigideira, onde o azeite já fervilha, na segunda volta a mão liberta pimentão fumado, açafrão, alho granulado e pimenta branca. Forma-se então uma roda colorida à volta da frigideira. Ao som do Bolero de Ravel, junto ao bico do fogão, em tons de azul, vermelho e amarelo, a luz repete religiosamente a coreografia da cozinheira, os braços de fogo contornam a base da frigideira, umas vezes dobram em direção ao bico, como prostrados, outras parecem erguer-se trespassando a base da caçoleta. Por cima, o pimentão fumado escorre e cobre de vermelho os cubos de frango. O alho e a pimenta branca polvilhada pela mão da Ana, a cada pirueta, liberta um fumo da caçarola em tons avermelhados que deixam no ar o odor inconfundível do frango caramelizado. A bailarina faz uma Arabesque e no bico do lado liberta um fio de azeite no tacho. A mão de Ana liberta no fumo libertado em espiral pelo refugado, primeiro o açafrão em pó e o pimento fumado, depois a cenoura ralada. De repente, depois de um Echappé, o corpo dobra-se sobre o tacho e das mãos cai o arroz que depressa se mistura com o refugado libertando uma bola de fumo. Lentamente o fumo vai-se dissipando e Ana liberta ervilhas sobre o arroz.

No outro lado da cozinha, o tofu em cubos e já marinado, salta em mortal encarpado a caminho do pirex. Pelo caminho os cubos passam de flic-flac em flic-flac primeiro num cadinho de sal para um de pimenta e terminam no pirex com alho, pimentão fumado, molho de soja e mel. À ordem de Sofia, a cenoura cortada, seguida pela courgete, pela beringela em brunesa fina seguem em mortais à retaguarda até aterrarem no mesmo pirex que segue para o forno. No final, o Cuscuz junta-se na taça com manjericão picado, menta fresca, tomilho fresco.

A esta hora as crianças já tinham entrado no refeitório. Estranhamente aguardavam em silêncio. Os pratos eram servidos. A sopa rapidamente desaparecia dos pratos. Num refeitório de miudagem ouvirem-se só os talheres no prato, algo se passava. Mas à medida que os grupos de miúdos saiam para o recreio, os decibéis subiam estrondosamente, as crianças não paravam, uns dançavam outros pulavam. A refeição parecia ter despontado neles a genica que, estranhamente lhes faltara ao almoço. Todos cantaram para a Sofia e a Ana. Mas, estavam as Chefes rodeadas pela miudagem que reclamava autógrafos quando, de repente, um deles resolve gritar: Joaaaanaaa, Joaaannaaa! Joana era a cozinheira que diariamente lhes prepara o almoço e que nesta refeição lhe preparara a sopa. Envergonhada, a Joana lá acedeu aparecer no recreio, rosada, de mãos embrulhadas e foi ruidosamente aplaudida por toda a pequenada e saiu em lágrimas, vá se lá perceber porquê. CMC/HC/PS

 

Cascais Digital

my_146x65loja_146x65_0geo_146x65_0fix_146x65360_146x65_0my_146x65loja_146x65_0geo_146x65_0fix_146x65360_146x65_0