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O dia em que o professor saltou da panela

O dia do chefe vai à escola na EB Branquinho da Fonseca foi um panelão de surpresas.

Surpreendentemente, na manhã de quinta-feira, a EB JL Branquinho da Fonseca, já com os pratos alinhados na mesa do refeitório, mas ainda a mais de duas horas do repasto, vivia um grande alvoroço. O barulho vinha exatamente de uma panela na cozinha. Em bom rigor uma grande panela não um pequeno tacho, e não vejam aqui qualquer ironia na semântica, mas, na verdade, um tacho é pouco fundo para este som ressoado de uma voz grave e impositiva. Um verdadeiro vozeirão que soava bem lá do fundo. Depois apercebemo-nos que à voz de comando respondia um murmúrio, por sinal, muito bem orquestrado.

E assim, o som se foi tornando grave e nítido. E sendo a clareza, neste caso, um predicado formal, fazia emergir a substância, pelo volume da voz que troava dentro da panela, como um borbulhar da água quando ferve. E assim, lá deixava perceber algumas palavras.

- Cebolas? Questionava essa voz retumbante. E a reação não se fizera esperar:

- Presente! Em uníssono.

- Alhos? Ressoava a voz de ordem.

- Presente! Respondia com a prontidão sugerida.

- Couve-flor? Presente! Respondia este parente dos brócolos, da couve e do repolho.

- Feijão? Presente! soltava a leguminosa.

Bom, e por aí a fora… cenoura, cogumelos, sem que faltasse a proteína animal, representada pelos nacos de porco, os hidratos concentrados no macarrão e a gordura vegetal revelada num bom azeite.

E bem se podia dizer que estava reunida a tropa, caso se tratasse de um rancho. Mas não! Tudo se encaminhava para uma Massa à Lavrador, com algumas adaptações para não ferir a suscetibilidade gustativa dos pequenos.

Rancho ou Massa à Lavrador isso agora não vem ao caso. O que nos prende de momento, para dar sequência à narrativa, é que, em breve, o chef António Pires, acabará por “saltar da panela”, deixando que a química produza as suas transformações.

E assim foi. Mal saiu, António ditou, colher de pau em riste, como se fora alquimista:

- Que a louca dança dos átomos comece ao som do fervilhar da água e que os pares se refaçam numa recomposição molecular, como num baile em que o tempo é o ritmo, temperatura e humidade a harmonia.

No recreio, os miúdos, apesar de ordeira e serenamente sentados à porta de um pavilhão, à sombrinha de um alpendre, reclamavam a presença do chef (aqui escrito e pronunciado à francesa, comme il faut!) .

Por isso, mal o António saltou da panela logo, logo uma comissão de doutos anfitriões veio reivindicar:

-Queremos o chef no recreio e nas salas de aula!

E aquilo foi uma ordem. António arranjou o “Toque de Blanche”, arregaçou mangas e lá foi ele à frente da comitiva, como se a conduzisse a caminho da escola profunda.

Ora, e como será este marinheiro em terra? O António, cozinheiro de profissão, chef de posto abeira-se da pequenada, apresenta-se e inicia um diálogo desconstrutivo. Não fala de si, escuta, um verbo tão pouco conjugado. 

O que gostavas de ser? Pergunta. E eis que os sonhos despertam: Médico dentista, diz um, bombeiro, diz outro, cozinheiro, atira outro, vou ser cabeleireira, assevera a pequenota. E, assim, os sonhos vão saltando, soltos, largados ali em público, primeiro atropelando-se uns aos outros, como revelações de pequenos tesouros perdidos no íntimo da pequenada, mas aos poucos vão surgindo sem receios, banalizando risadas. Porque a todos o António trata por igual, bem como a todas as profissões, dá-lhes  a mesma atenção e importância.

- Olha, ainda bem! Vamos todos precisar de dentistas e cabeleireiros também! … e, se queres ser cozinheiro posso ensinar-te... Bombeiro? Muito importante.

Todas necessariamente importantes como os sonhos que as evocam. E, se todos são necessários, não há como distingui-los. Quem diria, mas a vida acabaria, algum tempo depois, por lhe dar razão.

Fica, pois, a lição do professor, cozinheiro e chef, que já vai a caminho da próxima aula a quem o aguarda na sala.

António questiona, responde, mas sobretudo, como dissemos, ouve. Equilibra, no seu discurso, o propósito e o a propósito, não esquecendo um nem se perdendo no outro. Fala da sua massa à lavrador, decompondo-a em cada um dos ingredientes e palestrando da riqueza de cada um deles, dos perigos do sal, do açúcar, dos excessos. Fala da proteína animal e vegetal, não diabolizando uma, canonizando a outra. Fala de diferenças e da riqueza dessas diferenças e, de repente, no meio da plateia, apercebe-se da presença de uma criança síria, com um pequeno véu na cabeça. António não hesita:

- Como te chamas? 

- Para ti tenho uma massa a lavrador com pedaços deliciosos de frango, uma carne também muito importante na nossa dieta alimentar.

E regressou assim à discussão gastronómica.

Não sabemos se a massa a lavrador com frango já estava contemplada no menu, mas, na verdade, ela lá estava na mesa.

Afinal, quem julgava que o chef fora da cozinha acabrunhava pela falta do sal, da pimenta, dos acepipes das couves e tudo o mais, que se desengane.

António, que visitou a EB Branquinho da Fonseca corria ainda o mês de fevereiro de 2020, deixou um conselho que até parecia premonitório: “Perguntei-lhes na aula se ajudam os pais a cozinhar, e grande parte deles não o faz. O grande problema na nossa sociedade, segundo um estudo recente, é a obesidade infantil que está a crescer muito. Perdemos o hábito de cozinhar porque é muito mais fácil encomendar. Até podem fazê-lo, esporadicamente, mas é importante que se habituem a cozinhar em casa, em família, porque assim é mais fácil alterar e criar bons hábitos alimentares”.

E foi assim o dia em que um chef saiu dos tachos e panelas na EB Branquinho da Fonseca para dar uma aula, como se de um professor se tratasse. H.C.

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